sábado, 17 de outubro de 2009

Um corpo que cai

O mais que se faz pode ser nada. Talvez o melhor seja o corpo na cama. Afrouxado, estirado. Que o corpo na cama não há nada igual. O mais que faço não há de ser nada. O corpo amolescendo, ainda que tenso, pesado ainda que suspenso no ar, na cama, ainda que fora dela. O corpo de bruços na cama com o coração batendo nela.

sábado, 10 de outubro de 2009

Vida

Tudo igual apesar da morte. O despertador toca ainda, o ônibus faz seu exaustivo trajeto, homens e mulheres saem e voltam pras suas casas mais gordos ou mais magros, alguém tosse a cada instante em todas as cidades do mundo, a cada mínimo fragmento de instante alguém ganha um beijo ou um tapa. As pessoas riem ainda.
As coisas são todas indiferentes à morte.

Alguém acaba de morrer no Equador, em Lima, em Nova York e na Romênia ao mesmo tempo em que escrevo esta linha e outras mais tornam a morrer enquanto esta frase está sendo lida. E o mundo continua dando suas voltas e a chuva vem caindo da mesma maneira molhada.

Alguma coisa morre dentro de alguém na Áustria, na Bulgária e na Guiana Francesa. Mas os comercias continuam passando na TV e tem um homem falando eu te amo nesse exato momento. As pessoas continuam comendo e trepando onde quer que seja, milhares ao mesmo tempo em todo o planeta.

Morrer sem estar morto e ver que a vida segue igual.
Morrer pra nascer de novo.
Alguém acaba de dizer socorro.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

CASA-DE-COISAS



Sou casa de coisas. Por dentro dos ossos dos braços, mãos e pernas, possuo placas tectônicas, que quando se esbarram causam pequenos ou grandes tremores. Após o choque, podem se precipitar os pequenos vulcões que habitam minha pele dentro, e que, após a agitação intensa das placas, entram em erupção na superfície dessa pele branca com algum vestígio de sol. Nos olhos tenho chafariz. Dentro do peito formou-se um moinho rústico de madeira. Em determinadas épocas brota pro lado de fora do peito uma espécie de manivela rotatória do moinho, que convida coisas do lado de fora a moverem-no. Pessoas, aviões, filmes, álcool, barata, espelho, música, televisão, pessoas, morte, filmes, televisão, altura, pessoas, filmes e livros. Todos mãos que giram a manivela fora que gira o moinho dentro. O movimento das hastes abre a carne e moe o coração.

Dentro da cabeça construí a casa onde moro - ou seria a casa que mora em mim? As vezes passo dias a fio trancada dentro dela e não abro nem as janelas. Principalmente quando estou em reunião com outros de mim que também moram lá. No meio das minhas pernas tem também uma casinha onde posso receber visitas que não eus. Algumas dessas visitas podem se tornar mais freqüentes. Uma delas além de se tornar tão frequente pode me fazer tão feliz, e pode sentir-se tão em casa, que um dia acaba deixando alguém que saiu de dentro dele morando em mim. Ou me faz tão triste que bagunça minha casa e bota pra funcionar as placas tectônicas, os vulcões, o chafariz dos olhos e o moinho do peito, todos ao mesmo tempo.

Casa de coisas esperando que caiba tudo. Querendo que o corpo abrigue além de mim. Tenho esses botões. Algum faz chover e eu fico de baixo olhando sem guarda-chuvas. Sou viciado em me molhar no tempo. Minha pele se alenta com a chuva. Chuviscaindo em mim. Molhandomente meu rosto. Caindormindo água na bocadência da língua.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Lembrança para Clara



Lago do Titicaca, 1 de junho de 2008

Já não me lembrava como é bom estar sã. A sensação de eternidade, de eterna permanência na dor que não cessa quando se está enfermo é das piores que o ser humano pode experimentar.
Finalmente bem!
No Titicaca, dentro da balsa, atravesso suas águas ditas sagradas, adorando a história que acabo de ouvir. A história é de que lá nasceram o Sol e a Lua, pra quem quiser acreditar. Para os campesinos daqui é verdade absoluta.
Essa balsa me traz lembranças de idas e vindas para Niterói, o mesmo embalo que a Baía de Guanabara propõe aos que por lá navegam.
Estou feliz de rever os niños bolivianos! Vou sentir falta deles.
Estou acordada, olhos atentos. No andar de cima só o céu. Clara tem medo de barco como eu tenho de avião. Ela dormiu. E agora não está mais com medo. Que bom remédio o sono.

Isla del Sol, 2 de junho de 2008

Que bom chegar até aqui. Este foi sem dúvida um dos lugares mais lindos por onde passei ao longo dos meus 27 anos. Vinte e sete anos não são nada. As ruínas que encontrei aqui têm mais de 9.000 anos. E estão lá, lindas e enigmáticas. Se eu chegasse aos 9.000 anos queria que fosse assim. Hoje visitei a pedra onde foram gerados o Sol e a Lua. Estou começando a acreditar nessa história só porque ela é tão bonita e misteriosa quanto esse lugar que esconde segredos embaixo de cada pedrinha e bem no fundo desse lago imenso.
Que belas histórias tenho ouvido... Juan as conta com tanto orgulho. Ele deve ter seus 50 anos e nunca morou em outro lugar. Nasceu ali, como o sol e a lua, mas a diferença é que ele jamais foi embora.
Subi na rocha e me sentei. De lá podia ver algumas ovelhas com seus filhotes. Tirei o sapato e pisei com a sola dos pés. Juan disse que a rocha era sagrada e eu sentiria se tocasse as mãos. Acho que era. Com os pés na pedra me senti rocha, céu, ovelha, água, Keruak, tudo ao mesmo tempo e indivisível. Estava estranhamente feliz.
É realmente sagrado esse lugar, todo feito de uma matéria que não se pode desvendar qual é.
Essa brisa hippie bate com toda força, é muito engraçado.
Clara adoeceu e não está vendo nada isso. Eu fico boa, ela adoece...

Lago do Titicaca, 3 de junho de 2008

Quero voltar um dia. Indo para Copacabana na mesma balsa em que vim para a ilha, vejo uma mulher que tenta interagir com duas cholas que estão no barco. Ela fala e pergunta coisas ao mesmo tempo em que fotografa tudo de uma maneira tão histérica que me faz trocar olhares e risos discretos com uma das cholas. Nós observamos a mulher e achamos graça, somos cúmplices.
Clara dorme novamente. Penso na minha chegada em Buenos Aires.

sábado, 15 de agosto de 2009

Mora em mim


Mora em mim. Sem teto nem parede e com janela. Mora em mim. Com a porta aberta. Mora, traz suas coisas, todas. Vão caber. Não será em vão. Vamos acabar com esse vão. Mora dentro de mim pelas pernas pelos braços e cresce nos meus cabelos e unhas. Mora mas sai pra passear.

Traz as ruas por onde andar, aquelas nuvens, seus reflexos nos vidros. Traz as músicas das coisas, toca elas aqui. Pra eu vibrar. Não me conta nada, mas traz as imagens, todas elas. Todos os sons e os sinais, os pontos de luz. Mora em mim que te dou um beijo, um bocejo, um meio, um feito, um eu.

E quando eu não estiver é porque volto já. Venho trazendo cheiros, tipos de olhar, um ou outro jeito de falar, um punhado de gestos, uns restos. Talvez um gato.

Porque gosto da imagem do cheiro nas ruas com gatos e seus gestos que se confundem com os pontos de luz que vibram com a música em baixo das nuvens que refletem nos vidros como sinais.

Porque gosto também do seu jeito de falar como se fosse um gato que caiu das nuvens que dão sinais fazendo a gente vibrar como se tocasse música nos pontos de luz que refletem nos vidros.

E de tudo mais que você trouxer.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Corta-azar

Fique de cabeça pra baixo e deixe que o sangue vá todo para a cabeça. Permanecer nessa posição até que os fios de cabelo cresçam 0,002 milímetros. Então você pode se levantar. Passe o dia inteiro observando insetos e se alimentando apenas de vaga-lumes. À noite, pra sentir uma breve alegria, durma em uma cama um pouco menor que o seu corpo para que, ao deitar de bruços, os pés fiquem para fora e possam manter a forma anatômica natural, formando um ângulo de 45 graus com as pernas. Que maravilha. Ao acordar no dia seguinte prepare um par de asas usando penas brancas que serão coladas em uma armação de arame. Prenda duas tiras de couro nas asas de arame, uma em cada lado, formando duas alças. Vista as asas como quem veste uma mochila. Dê um passeio pela vizinhança vestindo somente essas asas. Respire no mesmo ritmo em que caminha. Talvez você tenha vontade de pular corda. Se isso acontecer você deve ir até uma criança e pedir que lhe empreste uma, mas nunca, jamais, deverá comprar uma corda. Construa um relicário, o menor possível, e guarde nele os seus segredos e toda espécie de sonho.

O nascimento do amor


Era um filme de dor. Era um belo filme. Era um homem gordo, feio, sujo, um pouco sujo, que amava uma mulher bonita. Era um homem gordo e feio, que tinha uma mulher, um filho, um bebê, e amava outra mulher. E amava todas as outras coisas. Ele tinha mulher, filhos e culpa. Tinha culpa e um amigo que amava uma mulher que não amava ele. O amigo tinha um amor que doía. O homem e o amigo tinham crianças na alma. Tinham criança, tinham culpa e tinham medo. Tinham um ao outro também. O mais gordo tinha criança nos olhos. Tinha a serenidade de quem que se acostuma com a dor. Tinha o peso da vida nos olhos. Mas tinha sorriso. O amigo não tinha sorriso e o peso da vida era tão grande que tinha os olhos apontando pra baixo nas extremidades. Tinha vontades ao mesmo tempo.
O tempo demora demais pra passar.
E ainda assim não é tempo suficiente.